Literatura em Rede

confluências teóricas entre o literário e o digital

Literatura de Autoria Feminina

A compreensão da escrita de autoria feminina é pautada nos conceitos de feminismo e crítica feminista, os quais são concebidos como uma forma de política cultural. O feminismo procurou incomodar a cultural patriarcal, ao postular a igualdade de gêneros, visando à erradicar a dominação sexista.

O desenvolvimento da teoria feminista e a mobilização das posições críticas, que tendem à reconhecer que a mulher não é um ser físico, mas um “efeito da escrita”, nas palavras de Mary Jacobus, “não afirmam a sexualidade do texto”, mas a “textualidade do sexo”. Desse modo, a escrita não é compreendida apenas na instância de gênero, revelando-se como uma livre prática textual, imbuída de controle autoral e crítico.

Assim, a escrita feminista representa uma forma poderosa de política e de desconstrução cultural. Em se tratando dos estudos literários, esse viés crítico revaloriza e remodela os cânones literários, recusando uma unidade ou um corpo de teoria universalmente aceito. Com isso, a escrita de autoria feminina assume o caráter fundamental de politização.

Cora Coralina (1889-1985) foi uma poetisa e contista brasileira. A autora foi considerada uma das mais importantes escritoras brasileiras, tendo vivido longe dos grandes centros urbanos, alheia a modismos literários, produziu uma obra poética rica em motivos do cotidiano do interior brasileiro, em particular dos becos e ruas históricas de Goiás. A poetisa é considerada, por estudiosos e especialistas, como uma mulher forte e libertária.

Para pensar a escrita de autoria feminina, o poema “Todas as vidas” ilustra a configuração da mulher que se autoafirma em sua constituição identitária. A introspecção do poema de Cora Coralina viabiliza um olhar para a existência feminina como um ser pulsante:

“Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé do borralho,
olhando pra o fogo.”

Em sequência, pode-se afirmar que a identidade do perfil feminino construído por Cora Coralina assume a forma e a essência da simplicidade da vida. A figura feminina da mulher, na identidade de lavadeira e de cozinheira, faz perceber uma imagem da mulher que tem cheiro, que sente, que povoa o espaço com o seu ser com a plenitude da sua existência.

“Vive dentro de mim
a lavadeira do Rio Vermelho.
Seu cheiro gostoso
d’água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde de são-caetano.
Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem-feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.”

Nessa perspectiva, a mulher não é produto da “sexualidade do texto”, mas se projeta na dimensão da “textualidade do sexo”. O referencial feminino emergente de sua obra confere voz e legitimidade à figura da mulher que foi excluída do sistema patriarcal, mas que ocupou o seu espaço na sociedade de forma política e engajada:

“Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada, sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.”

Ainda pode-se entrever, na figura feminina construída no poema, a mulher que trabalha, que madruga, que exerce o seu ofício e ocupa lugar na esfera social. A construção identitária da mulher configura-se por meio das formas plurais que ela assume: a mulher lavadeira, cozinheira, a mulher da roça, trabalhadeira, a mulher do povo, a mulher da terra:

“Vive dentro de mim
a mulher roceira.
– Enxerto da terra,
meio casmurra.
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem chiadeira.
Seus doze filhos,
Seus vinte netos.”

Além disso, Cora Coralina atribuí ainda mais uma identidade que se soma às demais e reflete a sua existência: a mulher da vida. A mulher que faz parte do todo e, ao mesmo tempo, é o todo. Sua razão de ser é viver:

“Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha…
tão desprezada,
tão murmurada…
Fingindo alegre seu triste fado.”

Em síntese, mas não esgotando a potencialidade da criação poética de Cora Coralina, pode-se compreender que a existência da mulher é um pulsar de muitas vidas em uma só, uma construção multifacetada e dinâmica, que se fragmenta e se reconstitui na singeleza do simples ato de existir:

“Todas as vidas dentro de mim:
Na minha vida –
a vida mera das obscuras.”

1 – Como é possível pensar a construção da identidade feminina no poema de Cora Coralina? Pense nas imagens poéticas e relacione tais figuras com a concepção da autora sobre a existência da mulher.
2 – Pode-se verificar a existência de traços de politização no poema da autora? Pense em quais elementos do poema permitem compreender a dimensão da figura feminina como um ser político.

CORALINA, Cora. “Todas as vidas”. In: Poemas dos becos de Goiás e estórias mais. Global Editora: São Paulo, 1983.

FERNANDES, Cleudemar. KHALIL, Lucas Martins. “A construção identitária em Cora Coralina: relações entre o sujeito e as coisas de sua terra.”
VILAS-BÔAS, Iêda. “Cora Coralina – a mulher poeta e suas múltiplas vozes”. Dissertação de mestrado, Brasília, UnB, 2009.